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Às vezes eu sinto tanta coisa que pra começar a escrever eu ia precisar inventar letras novas. A tentativa é fútil, né. Não vai rolar. Quem sabe um dia eu reinvente minha própria eloquência e faça jus a tudo que eu quis dizer no passado, mas eu tenho a impressão de que o presente vai sempre ser essa incógnita. Esse incômodo no peito querendo virar letra nova.
Eu lembro de uma vez que, sem querer, conversando com a minha avó, a gente começou a falar de cinema. Eu não sabia que a minha avó tinha histórias com cinema, ela nunca demonstrou interesse por filmes. Na verdade sempre foi muito difícil pra minha avó se entender como alguém com interesses. Eu acho isso melancólico, então sempre tentei entender os interesses dela nesses momentos mais casuais.
E então ela me contou sobre como era barato ir no cinema, tão barato que ela costumava frequentar pra assistir séries, todo dia um episódio, às vezes por uma semana inteira. Eu sabia que isso existia, claro, mas eu jamais imaginaria que a minha avó tivesse vivido isso. Uma memória tão incrível, tão perto de mim. Uma memória que se perderia pra sempre caso eu não a tivesse encontrado na esquina de uma conversa qualquer sobre como hoje em dia é caro ir ao cinema.
Eu gosto de pensar que eu herdei essa memória. Agora ela é minha, e eu pretendo cuidar dela com carinho. Eu não sei se já inventaram letras suficientes pra que eu descreva meus próprios sentimentos, mas essa memória eu consegui preservar. Como se preservar uma memória quase perdida fosse uma maneira de honrar todas as outras.
Eu sei que não é, mas pra mim é como se fosse.