Campeiro
Estão desbotadas as fotos, eu sei. E eu sei que toda vez que eu abro essa caixinha eu choro, mas eu já não tenho meus 20 anos. Se eu jogar isso aqui fora, quem me garante que eu vou conseguir lembrar do rosto da minha mãe? Ela era uma mulher séria, eu nunca soube muito da vida dela, só sei que usava seu vestido simples e cumpria suas tarefas. Por medo, quase não olhava nos olhos do meu pai; por desinteresse, quase não olhava nos meus.
Não fosse pelas flores, ela teria chegado e partido dessa vida sem deixar nenhuma marca nas minhas memórias. Mas era nas flores que ela deixava escapar toda a sensibilidade que a vida lhe negou. Sempre bonitas e bem cuidadas, nos arbustos e também nos vasos espalhados pela casa. Uma vez perguntei a ela de que adiantava tirá-las do jardim pra colocar nos vasos se elas acabavam morrendo em alguns dias. Ela não me respondeu e foi cortar mais flores, mas naquele dia, mais tarde, eu vi uma lágrima escorrendo de seus olhos. Me odiei por estragar a única coisa que trazia alegria pra minha mãe.
Eu também tinha algo que me trazia alegria: meu cachorro. Um pastor alemão alegre e brincalhão que meu pai tinha comprado pra cuidar da propriedade. Se passaram poucos dias até ele perceber que Campeiro — que já veio com esse nome — não era o tipo de cachorro que passaria as noites alerta aguardando intrusos. Era um cachorro muito bonzinho, o que para meu pai era uma falha. Supliquei pra que eu pudesse ficar com o cachorro e ele, como sempre, não me respondeu, mas no dia seguinte Campeiro ainda estava lá. Fomos muito felizes!
Minha mãe nunca admitiu, mas eu sei que ela gostava de Campeiro, principalmente porque o cãozinho era capaz de me distrair e me fazer feliz, coisa que ela não sabia como fazer. Eu era uma criança muito introspectiva, e passava a maior parte dos meus dias dentro do quarto dos meus pais, mexendo na penteadeira da minha mãe, passando seus produtos, usando seus perfumes. Eu não sei porque, mas isso não a incomodava.
Quem tirou essas fotos? Eu mesma. Eu jamais ousaria fotografar meu pai, mas no dia em que o vi abraçando Campeiro perto de uma cerca, acabei não resistindo. É a única lembrança que tenho dele, mas a escondi muito bem por anos, nem sou capaz de imaginar o que ele faria caso descobrisse essa foto.
Num desses dias lentos e quentes de verão tirei a última foto da minha mãe e de Campeiro, juntos. Eu já era mais velha e a minha presença em casa já incomodava meu pai. Ao cair da noite, procurando Campeiro para poder fechar os portões do rancho, o encontrei caído no chão, sem vida. Em sua boca, algumas pétalas de uma rosa que eu jamais tinha visto nas roseiras de minha mãe. Ela mesma não reconheceu a planta, jurou de pés juntos que não era dela. Mesmo assim, a tristeza a consumiu. Foi ficando cada vez mais fraca, desanimada, até que um dia também nos deixou.
As roseiras também morreram. Cansei de me enfiar naqueles arbustos procurando flor parecida com aquela, de cor esquisita, que nem ao menos me lembro. No dia em que minha mãe se foi, não restavam mais flores. Vesti o vestido simples de que ela tanto gostava e tomei meu rumo.
Daquele tempo, tudo que me resta são essas fotos, o vestido da minha mãe e as memórias de Campeiro correndo, satisfeito, sem olhar pros lados nem temer pela própria vida. Essa é a maior virtude dos cachorros, né? Eles não pensam no futuro.