encontrar padrão em dejeto de pombo

Guilherme Polonca
2 min readNov 26, 2019

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Quando eu tinha uns dez anos, a moda na escola era exibir a etiqueta na língua do tênis pra mostrar que era original. Eu pagava um pau pra aquilo. Não pra tênis originais, não era esse o ponto. O ponto era a estética da etiqueta. A presença daquela etiqueta ali denotava certo esmero na fabricação, parecia que o tênis tinha sido pensado por um ser humano. Eu gosto de um design esmerado até hoje, levei isso comigo.

Mas eu não tinha nenhum tênis com etiqueta. Sei lá, tênis de criança não vinha com etiqueta. Até que chegou a hora de comprar um tênis novo e, quando minha mãe me levou na loja, eu fiz de tudo pra escolher um modelo que, além de ser visualmente agradável, viesse com a tal da etiqueta na língua.

Dito e feito! Comprei um tênis que nem era tão bonito, no final das contas, era marrom e bem sem-graça, mas a etiquetinha tava lá e pra mim aquilo bastava. Deve ter sido o único tênis com etiqueta cujo preço minha mãe aceitou pagar. Eu nem queria mostrar a etiqueta pra ninguém, não fazia questão nenhuma disso. Era a mera presença dela que me deixava mais que satisfeito.

Aí naturalmente, criança viajandona que sempre fui, me pegava viajando no tênis em toda oportunidade que surgia. Dentro de casa de bobeira? Ficava olhando o tênis. No ônibus indo pra algum lugar? Olhos na língua, quase que enxergando a etiquetinha por trás do tecido. Sozinho e realizado.

Pouco tempo depois disso meus avós fizeram um churrasco na casa deles e chamaram bastante gente. Eu tava lá, obviamente com o meu tênis. Entre uma brincadeira e outra, parava pra admirar ele um pouco, sentado olhando pra baixo ou mesmo com o pé na cadeira. Puxava a língua um pouco e lá estava ela, validando a principal tendência da terceira série e me deixando ali satisfeito; por mais esquisito que parecesse uma criança toda emborcada olhando pros próprios pés.

Mas o problema é que parecia esquisito mesmo. E os adultos, em toda sua certeza de que compreendem tudo ao seu redor, sentiram a necessidade de compreender aquilo. Chegaram à conclusão de que eu estava triste porque ninguém tinha elogiado meu tênis novo e puseram-se a fazê-lo.

Eu nunca quis que ninguém elogiasse meu tênis, isso não fazia a menor diferença pra mim, mas se tem uma coisa que sempre me incomodou é ser entendido errado. Eu não gosto de ser entendido errado até hoje, mas quando eu era criança eu odiava.

Fiquei muito bravo, mas não expressei: pra mim, a única coisa pior que ser entendido errado seria que percebessem que eu estava bravo e entendessem errado novamente a fonte da minha ira. Com certeza alguém chegaria a alguma conclusão desesperadoramente incorreta, o que só me deixaria mais bravo.

Aí não dá.

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Written by Guilherme Polonca

crônicas de ódio e outros sentimentos menos nobres

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