nu
crônica de uma ou outra madrugada
“ei, google! mude as luzes para verde”
“ok, pra quando você quer seu alarme?”
“eu falei pra mudar as luzes para verde!”
e então as luzes ficaram verdes. o velho levantou da cama, ficou em pé por alguns momentos e logo cedeu à gravidade novamente. caiu macio, mas alguma coisa na cabeça o deixou tonto. nem cair era mais tão fácil como um dia fora.
a cabeça girava um pouco; havia bebido. o prazer fácil de outrora também já não era mais o mesmo. que ninguém o entendesse mal: não havia virado um alcoólatra como seu pai; mas a euforia alcoólica da juventude havia se transformado numa sucessão de arrependimentos que cada dia mais valia menos a pena.
“eu bebo porque eu gosto da experiência da cerveja, faz tempo que eu não bebo uma IPA” — disse o velho, mantendo o ritual antigo de quando ainda tinha alguém para ouvi-lo. o vento não respondeu nada. comprou a cerveja, então.
“essa cerveja deve ser muito boa, hein” — disse o entregador — “pra me fazer vir até aqui pra te trazer só uma garrafa.”
esgareceu e pagou com a digital. teria achado isso o máximo na juventude, mas hoje em dia era só (mais) um dos (tantos) atos de (mais) economia de esforço e puro tédio. o velho sentia vergonha de, nessa idade, ainda experimentar tédio. lhe parecia o menos nobre dos privilégios adolescentes, o que menos sentia falta.
abriu a cerveja, tomou e era realmente boa. o torpor logo veio e por breves momentos lhe foi satisfatório, mas logo se viu dentro da melancolia que nunca foi capaz de escapar. era diferente quando, em tempos mais tenros, bebia em companhia.
o velho passou boa parte de sua vida se gabando de que, diferente das demais pessoas, contar os bons amigos quase lhe esgotava os dedos das mãos. mas o tempo, irredutível agente, havia de alguma forma lhe afastado a maioria. morte, circunstâncias, distância. “amigo é dinheiro no bolso”, sua mãe costumava dizer; num arroubo inevitável de um tipo de cinismo que parecia demasiado até pra ele, que na época já se considerava mais cínico que a maioria.
riu das lembranças aquele riso que só repuxava um canto dos lábios e, sem censura, abaixou a cabeça. adormeceu ali mesmo, sentado. no dia seguinte estava conversando com alguém que, por mais que se esforçasse pra lembrar quem era, já não conseguia relacionar com viva alma.
“por que o senhor está tão triste?” — perguntou-lhe o jovem que, por interessado que estivesse, não conseguia impedir o corpo de trair suas intenções de logo, logo, estar em outro lugar, fazendo outra coisa.
“olha, pra te falar a verdade eu nem sei”.