Percebe?
Nasceu. E apesar dos incômodos de praxe, do trauma da semiconsciência, do tato, do paladar, do olfato, tudo ao mesmo tempo, não havia muito do que reclamar. Afinal, só existe aquilo que se percebe, e ainda não tinha muito a ser percebido.
Mas depois teve, e é aí que mora o problema. A espiral da percepção é uma via de mãos múltiplas: primeiro, se percebe; depois, se percebe que está percebendo; e por fim, se percebe estar sendo percebido. E esse é o começo do fim.
“Nada pior que ser percebido, afinal”, pensou anos depois, já munido de percepções o suficiente pra perceber que o problema era justamente esse. A partir daí, viveu se esforçando pra passar despercebido. Ingrata tarefa: de tanto tentar, sempre acabava denunciado. E por onde passava, o percebiam.
Passava os dias fantasiando com a felicidade que seria se do dia pra noite deixassem de percebê-lo. Não é esse o limite da moral, afinal? Se quem não é visto não é lembrado, o que reserva o mundo a quem nem sequer é percebido?
Por irônico que fosse, sua percepção era aguçada. Certo dia, durante o horário de almoço, meio escondido no canto mais imperceptível do local em que trabalhava, percebeu um objeto brilhante esquecido atrás de um arbusto: uma lâmpada de gênio.
Tentando se esconder ao máximo da percepção alheia, pegou na mão e deu uma esfregadinha com a camisa, afinal, não tem como passar vergonha sem ninguém olhando. Por motivos que até este narrador desconhece, saiu mesmo um gênio de dentro da lâmpada que, ciente de sua fama, nem fez questão de explicar em detalhes:
“Você tem direito a três desejos”, disse. Certo de que já tinha visto de tudo nesse mundo.
“Meu desejo é que ninguém mais me perceba!”, exclamou sem nem perceber o absurdo daquilo tudo.
Pra absoluto espanto da criatura ancestral, esse desejo era inédito. Percebeu que, pela primeira vez em alguns milênios, se interessava pela mente de um ser humano. Mas era muito profissional, e logo se pôs a trabalhar. Concedeu o desejo:
“Que ninguém mais te perceba!”, bradou, batendo as mãos num estrondo.
E percebeu que estava falando sozinho.