quem estiver de sapato não sobra
minha avó não usa calças. quando eu era criança, eu sempre achei isso muito curioso. ora, é uma fórmula simples! está frio? coloque uma calça.
incontáveis vezes presenciei minha avó reclamando das baixas temperaturas, entretanto, sem jamais abrir mão das saias que sempre costurou a mão. saias retas, estoicas, em tons escuros e pouco chamativos aos olhos. saias que iam até um pouco abaixo dos joelhos e acabavam de maneira tão simples quanto haviam começado.
a família toda sempre teve este fato como pura teimosia. “não se pode mudar os hábitos de um idoso”. mas eu nunca comprei bem essa simplicidade: algum motivo minha avó tinha, por mais que ela sempre se esquivasse das minhas tentativas de fazê-la contar o porquê daquela insistência nas saias amarronzadas.
um dia ela decidiu me contar: no interior de Minas Gerais, na década de 50, não era tão comum assim que uma moça de seus 17 anos viesse trabalhar em São Paulo. a boca pequena da cidadezinha de Barra Longa, que pro meu total espanto nem constava nos meus Atlas escolares, não conseguia deixar de levantar suspeitas sobre o destino de uma jovem num lugar tão moderno e de fama tão libertina quanto São Paulo. a calça era um dos símbolos dessa modernidade tão temida.
ao sair de sua cidade natal, minha avó prometeu à sua mãe que jamais usaria calças. a promessa, que pode parecer tão simples e ultrapassada pra olhos cínicos como os nossos, trazia em si muitos outros significados.
minha bisavó faleceu décadas antes do meu nascimento, e desde sua morte minha avó não volta mais pra Barra Longa. mas calças ela jamais vestiu.